Gazeta da Torre
Em um discurso inflamado, um deputado recentemente cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) levantou as bandeiras da religião e da moralidade contra uma decisão jurídica. Apesar do estranhamento na repercussão desse episódio nas redes sociais, as ideias de que a sociedade brasileira precisa ser cristã, da família branca, heterossexual e temente a Deus conversam com uma parcela grande da sociedade e não irão desaparecer, de forma que a esquerda se engana ao pensar que essas crenças estão apenas associadas a um modo de vida tradicional que irá sumir com a modernização, defende Angela Alonso, professora de Sociologia na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Na entrevista ao Canal UM BRASIL, uma realização da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), ela fala sobre os dez anos dos protestos de junho de 2013, que culminaram, anos mais tarde, no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). O tema é tratado no seu livro recém-lançado Treze: a política de rua de Lula a Dilma. A entrevista marca a estreia da série Brasil com S, que surge da parceria entre a revista Exame e o UM BRASIL — e que trará diversos nomes dos cenários nacional e internacional para debater os principais temas do País.
Um dos pontos que Angela avalia no bate-papo, comandado pelos jornalistas Gilson Garrett Junior e Vinícius Mendes, é como, durante os últimos dez anos, a moralidade tenha se tornado um tema predominante na política, nas manifestações e nos discursos. Para ela, é preciso contextualizar a “grande-angular da moralidade”, ou seja, como o tema vem, cada vez mais, permitindo se juntar, como que debaixo de um guarda-chuva, os que eram “injuntáveis”: pessoas pró-mercado e defensores das liberdades individuais, assim como os favoráveis ao regime militar e superautoritários. “E ainda coube os evangélicos, em defesa da moralidade privada. Esse grande ‘guarda-chuva moralizador’ que foi juntando gente se mostrou um dos grandes temas de junho de 2013, sem contar os protestos subsequentes. [O discurso que vemos hoje] é menos sobre o que os governos de esquerda fizeram e mais sobre como isso foi lido por essa parte da sociedade”, enfatiza.
A socióloga ainda explica que, para a direita brasileira, a discussão em torno de temas mais caros à esquerda, como os problemas sociais do País, nunca é encarada de fato, em decorrência do receio de se perturbar a hierarquia social. Contudo, esse mesmo grupo novamente apela à moralidade quando defende que, antes de discutir as políticas contra a desigualdade, é preciso que exista um governo moralmente impoluto. “Essa retórica da moralização passou a dominar o debate político, de que são os bons governantes que devem ser valorizados, e não as boas instituições e as boas políticas”, sinaliza. “Os discursos recentes de parlamentares continuam tentando trazer de volta a conversa para o plano da moralidade e tirá-la da desigualdade.”
Movimentos nas ruas a partir das jornadas de junho de 2013
Na entrevista, Angela explica que uma parte do que vimos em 2013 cresceu nos anos seguintes. “Junho era um mosaico com muitos grupos e movimentos, com objetivos e agendas diferentes, que estiveram ao mesmo tempo nas ruas, pois tinham em comum o partido do governo federal — mas não havia um projeto e uma direção em comum”, destaca. Nos anos seguintes, as ruas foram tomadas por movimentos de feições mais liberais, conservadoras, e outros francamente reacionários.
Há algumas definições para o que foi aquele momento: crise de representação, reação contra o sistema político e a tese do “sequestro” (uma das mais predominantes atualmente), que defende que se tratava de um protesto de esquerda, mas que a direita tomou conta. “O ponto que eu defendo no livro é que não foi só nem uma coisa nem outra. Todas essas forças estavam, ao mesmo tempo, nas ruas. Quando ‘andamos’ apenas de junho para frente, acabamos considerando que foi aquilo que produziu o bolsonarismo. Eu fui olhar o passado para entender as origens desses movimentos”, afirma.
A socióloga ainda lembra que os protestos foram considerados pelo governo federal, à época, como de esquerda, de modo que as políticas de resposta ocorreram apenas nessa direção. Contudo, o slogan inicial dos protestos — contra o aumento de R$ 0,20 no aumento da passagem de ônibus em São Paulo — foi criado por gente que não pertencia à esquerda. “Essa parte da rua não foi chamada para negociar naquele momento. A gente pode pensar o que teria acontecido se os movimentos de feição mais liberal e conservadora também tivessem sido considerados. Será que não teriam deixado a rabeira autoritária no sereno?”, questiona.
UM Brasil
- divulgação -
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