quinta-feira, 19 de setembro de 2024

As várias faces dos incêndios no Brasil

 Gazeta da Torre

Professor Marcos Buckeridge

Os incêndios que estamos acompanhando em 2024 são, em parte, devidos a eventos naturais e, em parte, por ação dos seres humanos, apresenta Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP. A questão se as mudanças climáticas têm a ver com o que está acontecendo não é uma pergunta com resposta simples. Isto porque os incêndios que vemos acontecer no Brasil (e no mundo) fazem parte de um processo que se repete constantemente. Só no Cerrado brasileiro, já se sabe, a partir de análises do carvão armazenado em solos profundos, que há incêndios se repetindo há mais de 30 mil anos. Sempre há incêndios, esteja ou não o ser humano presente, pois o material produzido no Cerrado por uma ou mais estações secas fica na superfície e, se a região for propensa a ter tempestades elétricas, a ignição ocorre naturalmente.

Há também a regra do 30-30-30, ou seja, temperatura acima de 30 graus num momento em que a umidade seja menor do que 30% e vento acima de 30 km/h. Portanto, uma vez que condições como estas estejam vigentes, basta a ignição, que pode ser um raio ou uma bituca de cigarro atirada de um automóvel trafegando por uma estrada ao atravessar, digamos, uma região de plantação de cana. O ponto principal está, portanto na ignição. Não temos (ainda) como controlar as tempestades elétricas, mas não atirar a bituca de cigarro é algo muito fácil de evitar. Esses dois meios de ignição são acidentais. Há um terceiro, que está relacionado à psicologia. Segundo me contou um bombeiro que combate incêndios em São Paulo, algumas pessoas têm problemas psicológicos, ou seja, são incendiárias e precisam de tratamento. Outros são realmente criminosos e causam incêndios para prejudicar outras pessoas ou por dinheiro.

Os grandes incêndios ocorrem quando o sistema fica muito tempo sem queimadas. Nesses casos, uma vez que o incêndio é iniciado, se espalha muito rápido e é extremamente difícil de controlar. Foi por isso que os ocupantes das regiões de Cerrado, muito antes dos europeus, foram desenvolvendo técnicas de queima controlada, atuando para diminuir a biomassa e com isso evitar os grandes incêndios.

O bioma que queima mais fácil é o Cerrado, pois há muita palha (gramíneas secas). Mas este tipo de fogo é rápido e não permite ao calor penetrar muito no solo. Isto é importante, pois muitas plantas do Cerrado desenvolveram sistemas com órgãos subterrâneos que brotam depois do fogo. Se a penetração do calor for muito profunda, pode matar grande parte das plantas, e o Cerrado irá rebrotar somente com as sobreviventes, demorando muito mais para regenerar. Por isso, quando não há queimadas controladas (como fazem os povos originários há muito tempo), grandes incêndios ocorrem e é aí que o desastre é muito grande, com perda de plantas, animais e danos até aos microrganismos do solo, sem falar dos moradores da região. No Pantanal, há fisionomias de Cerrado, e também raios, o que serve como ignição e leva aos incêndios. As matas ciliares, cheias de árvores e com jeito de floresta, no período seco acabam queimando também.

Já na Mata Atlântica e Amazônia, queimar é bem mais difícil por causa da umidade que raramente cai abaixo de 30%. Mas se a seca for muito forte, podemos ter queimadas em florestas também. Aí o desastre é maior ainda, pois a recuperação demora bem mais. Pode durar décadas até que a floresta se regenere.

Em regiões onde temos fragmentos de florestas, como no Estado de São Paulo, o problema é que as queimadas que pegam a cana podem invadir fragmentos de florestas, causando a perda do pouco que nos resta.

Já aprendemos que há uma ordem nos compostos que vão queimando e que tudo depende de quanta energia há no processo de queima. Isso é importante, pois há fogos que são rápidos e outros mais demorados. Se pegar fogo em troncos de árvores, principalmente as que têm resinas, pode queimar por muito tempo e impedir ações efetivas para deter o incêndio.

Conforme as plantas vão queimando, primeiro saem os materiais voláteis, que vão reagindo e se transformando em outras moléculas, muitas delas substâncias prejudiciais à saúde, inclusive cancerígenas. Os materiais que exigem mais energia para queimar acabam mandando material mais grosso (partículas maiores) para a atmosfera e, dependendo das correntes de ar, podem sair lá da Amazônia ou mesmo da Bolívia e chegar ao Sudeste do Brasil. Se não chover, todo esse material fica suspenso no ar e aí é que se forma essa grande “nuvem de fumaça” que estamos vendo em vários lugares do Brasil. Quem sofre, nesse caso, são os nossos pulmões, os dos outros animais e até as plantas, que podem ter seus processos fisiológicos alterados por compostos presentes na fumaça.

Em 2019, tivemos um episódio de “chuva preta” que escureceu o céu de São Paulo em plena luz do dia e trouxe material particulado na direção da cidade. Agora, este mesmo fenômeno está ainda mais amplo e sendo visto em Porto Alegre. O material particulado que veio parar em São Paulo carregou desde partículas pequenas até pedaços de plantas. Esses materiais vão caindo onde chove e transferindo a poluição do ar para a água.

Até agora falei do fogo como algo que tem parte natural e parte humana no caso da ignição. Mas as atividades humanas vão mais longe. O aumento de temperatura devido às mudanças climáticas globais vem se tornando um fator importante na ampliação dos focos de incêndio no Brasil e no mundo.

Para entender esse lado da ação humana, é útil compreender como as variações climáticas podem se combinar na forma de uma “tempestade perfeita” (caso do Rio Grande do Sul, por exemplo). O papel do aumento de temperatura relacionada às ações humanas vem ficando cada vez mais importante e se tornando o vilão dos vilões do clima. Um exemplo é que a ciência já aponta para o fato de que o aumento de temperatura no Cerrado poderia ter potencial para eliminar o “ponto de orvalho”, que é o que umedece tudo de manhã. Sem umidade no solo, perde-se uma das últimas barreiras para atenuar os efeitos da queimada e, com isto, a perda de biodiversidade pode ser enorme.

Em locais como a Amazônia e a Mata Atlântica, o “ponto de orvalho” ainda não seria afetado, a não ser nas bordas dessas florestas. E se pegar fogo numa onda de seca muito forte, como esta de 2024 – ou, pior ainda, como a de 2013/2014, quando não choveu no verão – aí teremos incêndios de dimensões ainda maiores do que os que estamos vendo agora.

Tudo isso se relaciona com a situação de “tempestade perfeita”: clima “adequado” para o fogo (30-30-30), raios, psicologia social e mudanças climáticas. Esta é a condição incendiária que estamos vivendo em 2024 no Brasil.

Não bastassem os problemas apontados acima, podemos ter consequências igualmente catastróficas na nossa economia. Isto porque incêndios de grandes proporções podem afetar negativamente a nossa agricultura, atividade de grande importância econômica para o Brasil. Aí tem vários ângulos pelos quais podemos olhar. O material particulado age negativamente (diretamente) sobre as plantas, causando efeitos tóxicos.

Ainda sabemos pouco sobre como as substâncias produzidas pela queimada podem agir. Há inúmeras hipóteses. Uma delas é que compostos como etileno, que é um hormônio vegetal, possam causar “confusão” na produção de frutos e no “amadurecimento” da cana no campo. O material particulado também tapa o Sol e diminui a fotossíntese. Se esse material ficar muito tempo suspenso no ar e as plantas “perderem” várias semanas de fotossíntese, pode até haver impacto na produção agrícola de plantas como soja, milho e cana, os carros-chefes do sistema de produção agrícola brasileiro.

No meu laboratório temos trabalhado com plantas de soja cultivadas em alto CO2 em combinação com seca e alta temperatura. Já vimos que o efeito do CO2, que parecia benéfico, quando combinado com os dois estresses, torna a produção de sementes negativa. Juntando tudo isso com a fumaça e menos fotossíntese, é possível que a produção possa ser, sim, afetada. Se não for neste ano será no próximo, ou ainda no outro ano, já que, com as mudanças climáticas, a situação tende a ficar cada vez pior.

Se a situação piorar muito, as preparações que fizermos poderão se tornar o que chamamos “enxugar gelo”, já que não teremos como controlar os incêndios, o que pode criar uma situação realmente caótica. Apesar dos frequentes alertas, os governos têm dado resposta muito lenta com planos que atenuem os efeitos catastróficos que temos presenciado.

O que está acontecendo em setembro de 2024 é mais um alerta que se junta ao que tivemos com o evento no Rio Grande do Sul em maio deste mesmo ano. Um alerta de que os piores efeitos das mudanças climáticas já estão começando a nos cercar.

Fonte: Jornal da USP

- divulgação -

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