Gazeta da Torre
Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da
Violência da USP
Pesquisador Bruno Paes (Foto:ESTADÃO) |
Apesar de pesquisar e escrever sobre violência há tantos
anos, eu reajo como qualquer um diante de tragédias como os assassinatos ocorridos
na creche em Blumenau e na escola de São Paulo. Sou dominado pela raiva diante
da covardia abjeta e pela sensação de impotência; pelo desejo de encontrar uma
solução mágica para que casos como estes nunca mais se repitam. É humanamente
intenso: colocamo-nos no lugar dos pais, sentimos uma dor parecida porque
pensamos em nossos filhos, e tudo se torna insuportável. Nesses dias, fujo dos
noticiários para diminuir o turbilhão de sentimentos deprimentes.
Em algum momento, contudo, precisamos deixar as emoções
de lado na tentativa de compreender, com um mínimo de racionalidade, o que pode
estar por trás dessa onda de ataques, em toda sua complexidade. É a única
maneira de refletirmos sobre as melhores estratégias e políticas públicas para
lidar com o problema. As medidas populistas, inevitavelmente, aparecem em
momentos de desespero e medo. É compreensível, mas pensar com o fígado não
funciona.
Estamos diante de uma série de ocorrências que têm um
padrão. Apesar das especificidades de cada caso, existem semelhanças relevantes
que indicam causas comuns. São crimes feitos por homens, que agem motivados por
uma crença que oferece sentido aos atos odiosos que praticam. São ocorrências
que estão crescendo no Brasil e que já ocorrem nos Estados Unidos há mais tempo.
Não se trata de mera loucura. A agressão resulta de uma
leitura de mundo compartilhada entre os agressores, disseminada nos ambientes
confinados e virtuais nos quais eles se encontram, que vem ampliando um tipo de
comportamento que antes era excepcional, mas que atualmente faz a cabeça de
certas masculinidades confusas e perdidas. Os próprios crimes podem acionar
gatilhos e incentivar imitações, no chamado efeito bocejo, que também acontece
nos casos de suicídios, altamente contagiantes.
Essas redes funcionam como seitas, com seus próprios ídolos e bodes expiatórios. Se antes esses esquisitões viviam isolados em seu mundinho, com o surgimento das redes sociais, eles passaram a trocar suas impressões distorcidas da realidade em ambientes virtuais, sentados no sofá de casa, diante de seus computadores ou celulares, sujeitos a serem manipulados. A nova tecnologia das redes e a valorização da agressividade e da revolta pelos algoritmos foram fundamentais para a construção dessas identidades violentas e suicidas.
O senso comum costuma associar violência com
irracionalidade, loucura, baixo autocontrole, dificuldade de dialogar. Mas
esses atos, quase sempre, são direcionados pelas histórias que ouvimos e
contamos sobre a nossa própria realidade. Consensos de cunho moralista definem
culpados e inocentes, separam o certo do errado, estabelecem quem deve pagar
pelo nosso sofrimento ou desaparecer para que o mundo seja um lugar melhor.
Assim, conforme as circunstâncias, a agressividade pode se voltar contra certos
alvos, que acusamos como responsáveis pelos nossos infortúnios.
No caso do Brasil, existem diversas motivações e
discursos que vêm levando pessoas a se matarem, narrativas que já se formavam
bem antes das redes virtuais. São criadas a partir de histórias compartilhadas
no contexto em que vivem os assassinos. A maioria dos homicídios nos bairros
com as taxas mais elevadas no Brasil, por exemplo, ocorre em ambientes de
desordem, em que a justiça formal não chega, repletos de conflitos motivados
pela competição em torno do lucro oferecido por um mercado ilegal milionário,
entre pessoas armadas, que disputam poder e território à bala.
Essa percepção de desordem produz discursos em defesa dos
assassinatos, que se disseminam rapidamente entre aqueles que participam desse
meio. Cada homicídio tem potencial de produzir vinganças ininterruptas. As
mortes violentas passam a ser justificadas como necessárias para a
sobrevivência, criando um universo dividido entre aliados e inimigos. Dessa
forma, criam-se justificativas em defesa da morte dos rivais, promovendo um
tipo de comportamento contagioso e autodestrutivo. Entrevistei diversos
homicidas e eles sempre defendiam as mortes que praticavam, como se as vítimas
fossem culpadas.
Com os feminicídios, ocorre lógica parecida. Antigamente,
esse tipo de crime era chamado de passional, porque associado à forte emoção do
agressor, quase sempre um homem, como se a decisão de matar fosse causada por
um apagão racional. Existe, claro, uma dose de destempero e emoção nessas ações,
mas a causa determinante decorre de uma leitura tradicional, machista e
misógina do mundo, de assassinos que enxergam as vítimas como um objeto em seu
poder, que pode ser destruído quando se revela dona de seu próprio destino. A
permanência dessas crenças e discursos é uma das causas principais desse
comportamento violento, que torna o Brasil um dos países com as taxas mais
elevadas de feminicídios, problema que persiste como uma das grandes chagas das
famílias brasileiras, já que o trauma desse tipo de assassinato continua causando
dores ao longo de gerações.
No caso dos massacres nas escolas, quais são as crenças
dos assassinos? Como os discursos são articulados? Como eles se propagam? Qual
o significado dessas mortes para os assassinos? Algumas respostas são mais
simples do que outras.
Um dos aspectos mais evidentes é o papel das redes
sociais na criação do ambiente em que essas crenças e discursos se propagaram.
Cada assassino pode ter seus próprios dramas, dores, dificuldades, armas e
alvos. Mas a construção do desfecho fatal se potencializa no ambiente virtual.
Confinados em suas bolhas de desajustados, pinos redondos em buracos quadrados,
seus participantes cozinham seu ódio e articulam ações simbólicas e suicidas
capazes de extravasar a raiva que sentem, agredindo o sistema e o mundo, como
se quisessem revidar o mal-estar que eles sempre sentiram.
Difícil saber até que ponto essa raiva é real ou forjada
nos devaneios dos ambientes virtuais. O massacre nas escolas, nesse sentido,
seria uma espécie de vingança. Outra coisa é certa: o prêmio buscado pelos
assassinos é ser lembrado como o herói dos renegados, conquistando fama e
respeito entre seus iguais. Mais ou menos como os homens-bombas que não se
importam com a própria morte, porque serão premiados na eternidade.
Esse tipo de ambiente cultural violento, que invadiu o
cotidiano e também a política, passou a crescer e a se diversificar por causa
das redes socais. A tecnologia juntou iguais, para o bem e para o mal,
premiando os excessos em detrimento da moderação; ressuscitou ideias nazistas,
racistas, homofóbicas etc. Os estragos ficam pelo caminho. Bolhas passaram a
brigar umas com as outras, cada qual com seu pacote de verdades. A comunicação
e a cultura começaram a gravitar em torno desses conflitos entre as bolhas,
prejudicando o ambiente do diálogo, fundamental para a qualidade das políticas
públicas.
Parece óbvio, mas a solução terá que passar pela
regulação das redes. A sociedade civil e as instituições precisam pensar em
formas de retomar o controle cultural da sociedade, escapando dos dispositivos
que transformaram a vida numa arena de gladiadores lutando em defesa de suas
verdades. É preciso encontrar meios para mediar a ação dos algoritmos, que
garantem mais lucros a suas empresas quanto maior a intensidade dos conflitos
entre seus participantes. Teorias conspiratórias, um mundo dividido entre
vilões e mocinhos, o medo de uma ameaça invisível, o apocalipse, a necessidade
de encontrar culpados. Nossas conversas e preocupações se voltaram para a
realidade ficcional dos ambientes virtuais e a esfera pública se tornou um
ambiente sufocante.
Os massacres nas escolas são apenas um dos efeitos dessa
nova condição comunicacional e cultural. Os grandes conglomerados de
tecnologia, que lucram com a propagação da violência e da incivilidade, devem
assumir a responsabilidade sobre esses problemas que ajudaram a criar e que os
tornam tão ricos e poderosos. Mas será que a sociedade civil e os governos
encontrarão meios para levar essas empresas a abrir mão de tamanho poder? Não
sei. A discussão já está posta, com diversos especialistas pensando em como pacificar
a guerra das bolhas nas redes, controlar os discursos que fazem apologia ao
crime, sem prejudicar a liberdade de expressão. Não que seja simples. Será que
existem formas de desmontar essa engrenagem que produz discursos de ódio contra
nós mesmos? Será que os conflitos são necessários para dar sentido a vidas cada
vez mais vazias? Também não sei, mas o que nos resta é acreditar na capacidade
da humanidade de sair das armadilhas que cria para si.
Fonte: Jornal da USP
- divulgação -
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