Gazeta da Torre
Lançada pela USP, obra destaca atuação de jovens negros e
marginalizados que, desde a Conjuração Baiana, expressam uma consciência política
por meio do vestuário
Maria do Carmo Paulino dos Santos já era uma desenhista
industrial experiente quando começou um tratamento para se curar de um dano
grave no couro cabeludo, causado pelo excesso de alisamento. Negra, ela conta
que precisava manter o cabelo alisado para ser menos estigmatizada no mercado
de trabalho. “Eu estava em um processo depressivo, tentando o mestrado na USP,
e me identifiquei com a Marcha do Orgulho Crespo”, evento que ocorreu pela
primeira vez em São Paulo em 2015. “[A marcha] veio pautar o racismo com a
valorização da estética negra”, destaca Maria do Carmo que, a partir desse
movimento, passou a trabalhar a ideia da “moda afro-brasileira” em seu negócio
e em seus estudos.
Dona da primeira dissertação da USP que utiliza este
termo, agora a pesquisadora lança o livro Moda afro-brasileira é design de
resistência da luta negra no Brasil pela Coleção Caramelo, que reúne escritos
da produção acadêmica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Publicada no final do ano passado, a obra deverá integrar o catálogo disponível
no Portal de Livros Abertos da USP.
Maria do Carmo Paulino |
Atualmente, Maria do Carmo é doutoranda em Design pela
FAU e em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de
São Paulo. Em seu primeiro livro, a autora reúne textos sobre a moda feita por
pessoas negras no Brasil contemporâneo. Ela propõe que esta moda se apresenta
no cotidiano como linguagem de expressão nas roupas e no design de joias. Para
isto, ela apresenta o conceito de “moda afro-brasileira”, trabalhado por ela
desde o mestrado. Já utilizado no mercado da moda, o termo se refere ao novo
segmento originado pelo ativismo de jovens negros e periféricos, que resgatam o
legado da cultura e da resistência negra para expressar uma consciência
política.
“A gente carrega uma intenção na escolha do que vestir. E
é nesse vestir que a gente conta, imageticamente, um pouco da nossa história”,
destaca a pesquisadora, que também lança mão de fundamentos históricos e
comportamentais do período da invasão colonial para contextualizar seu
pensamento. “A pesquisa que estrutura o livro reflete a luta e a coragem negra
em todos os períodos da história brasileira, coragem em resistir e em jamais
sucumbir ao projeto de dominação colonial branco”, afirma Ana Barone no
prefácio da obra. A urbanista especialista em relações raciais é orientadora de
Maria do Carmo no doutorado pela FAU.
Para Ana Barone, o livro de “Duca”, como também é
conhecida Maria do Carmo, tem um tríplice caráter: estilístico, histórico e
político. “Eu percebi que na marcha [do Orgulho Crespo], o pessoal se produzia
para ir, se manifestar e enunciar: ‘Abaixo a ditadura da chapinha!’; ‘mulher
negra resiste!’. Então eu também trouxe a questão da linguagem narrativa
discursiva para esse trabalho”, conta Do Carmo.
Além de resgatar momentos históricos importantes
protagonizados por pessoas negras da sua linhagem de ofício – como a Revolta
dos Alfaiates –, a obra faz uma análise da moda “nós por nós” desde seus
registros nas faculdades de moda até a passarela mais famosa da América Latina,
a São Paulo Fashion Week (SPFW). Apesar de enxergar uma certa abertura das
grandes marcas para modelos e criadores negros, Duca acredita que o mercado da
moda se apropriou da potência negra e periférica para sobreviver à crise.
“Porque a moda gira a economia. A roupa de terreiro em si não é uma roupa ‘da
moda’; é uma roupa litúrgica. Mas ela vai ter detalhes produzidos em larga
escala, e vai transitar neste meio como uma referência identitária”, afirma. Ao
Jornal da USP, Maria do Carmo explica que elementos do modo de vestir negro
passaram a circular mais em um momento em que diversas marcas fecharam seus
parques industriais.
Recessão e exceções
O ano de 2015 ficou marcado na economia brasileira por
uma das piores retrações dos últimos 25 anos. Naquele ano, o setor de produtos
têxteis recuou 13,7% com um PIB encolhido em 3,8%. A maior queda desde a
contabilização, em 1996, pelo IBGE. O clima de incertezas no cenário político
afetou não apenas a economia, como também estremeceu a autoridade de algumas
marcas que ditavam as tendências estéticas. “Quando Gisele Bündchen encerra a
carreira surgindo pela última vez na passarela daquele desfile para a Colcci,
cheio de modelos brancos, a Fashion Week estava perdendo força”, destaca Maria
do Carmo que trabalhou nos backstages nas origens da SPFW, quando ainda se chamava
“Morumbi Fashion Week”.
No ano seguinte, Emicida e seu irmão Fióte ocupam a mesma
passarela na estreia de sua marca, LAB, com modelos plus size e um casting
predominantemente negro. “Ele abre o desfile colocando a periferia no centro. E
ainda cantou: ‘Fiz com a passarela o que eles fez com a cadeia e com a favela:
enchi de preto’. Foi uma grande sacada”, avalia a pesquisadora. Ela lembra,
porém, que a partir da edição seguinte, a SPFW amplia os modos de apresentar a
moda experimental feita no Brasil, e adota o modelo “pague para entrar”. “Os convites
não eram cobrados, mas eram muito disputados. Mas não só isso. A partir do
momento em que a periferia consegue um espaço, eles começam também a
identificar os influenciadores digitais para poder alavancar o evento”, afirma.
Mesmo assim, a mestre em Têxtil e Moda não vê nas grandes
passarelas uma moda criativa e um produto consistente. “Eu acho que o pessoal
tem muita dificuldade para fazer o desenvolvimento de um produto de moda, sabe?
Não basta misturar peças aleatoriamente e colocar um corpo negro. É preciso
contar uma história e saber fazer uma boa modelagem”, destaca Maria do Carmo,
que criou o Ducaduca em 2005, ateliê especializado em moda afro-brasileira e
moda praia plus size. A designer também idealizou projetos de desfiles de moda
“Afro” e de processos criativos em resíduos têxteis, para estimular a geração
de renda de mulheres nas periferias das zonas sul e norte, onde mora.
Mãos negras
Quase cem anos antes da Lei Áurea, em 1798, a luta por
liberdade e igualdade de direitos marcou a história do Brasil com sangue negro.
A Revolta dos Alfaiates, movimento que também ficou conhecido como Revolta dos
Búzios e Conjuração Baiana, atraiu a atenção e conseguiu o apoio de diferentes
camadas populares como médicos, militares e clérigos. No bojo de outros
movimentos sociais organizados na França e no Haiti, a Revolta dos Alfaiates
costurava suas articulações políticas nos ateliês de jovens alfaiates negros. A
partir do desejo de um País livre da escravidão, marginalizados e sonhadores
almejavam também a emancipação do Brasil.
“Eu vejo que esse movimento de moda-ativismo, que tanto
falamos hoje, começou lá atrás com João de Deus e Faustino Lira, antes mesmo da
Revolta dos Malês. Eles faziam a alfaiataria da corte portuguesa, mas foram
enforcados e esquartejados em praça pública porque queriam a liberdade das
pessoas negras”, lembra Do Carmo. Em seu livro, a modelista destaca as
habilidades de que dispunham esses profissionais, que, com criatividade e
domínio da técnica, traçavam o modelo do corte diretamente sobre o tecido.
“Infelizmente, a história da moda brasileira é contada
por um viés europeu e a partir do século 19”, aponta a pesquisadora. Apesar de
plenamente capazes e habilidosos no feitio de vestuários e joias, os negros
brasileiros foram impedidos de realizar ofícios de mestre durante o período
colonial. De acordo com Maria do Carmo, seu conhecimento e contribuição
configuram atos de resistência, ainda hoje invisibilizados.
Fonte: Jornal da USP
- divulgação -
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