Gazeta da Torre
Academia Brasileira de Ciências publicou lista de
propostas para os candidatos à presidência da República. Educação é destacada
como pedra fundamental do sistema
A Academia Brasileira de Ciências (ABC) apresentou na
quinta-feira, 23 de junho, seu conjunto de propostas para os candidatos à
presidência do Brasil em 2022. É uma tradição que a mais antiga entidade
colegiada de cientistas do País — fundada em 1916 — mantém desde as eleições de
2006. Muitos dos desafios listados no primeiro documento permanecem válidos:
fortalecer a educação em todos os níveis, aumentar os investimentos em ciência
e tecnologia, formar mais mestres e doutores, apoiar a inovação na indústria,
etc. Mas o documento deste ano traz uma novidade particularmente desagradável:
um apelo contra o retrocesso e o desmonte do sistema nacional de ciência e
tecnologia.
“O momento atual da ciência brasileira é preocupante,
principalmente pela drástica e persistente redução de recursos alocados para as
atividades de ciência, tecnologia e inovação. Este contexto tem causado
desestruturação e sucateamento do ecossistema científico e tecnológico, levando
à fuga de cérebros do País, ao desalento dos jovens pesquisadores e à perda de
credibilidade do sistema”, é a primeira mensagem destacada no documento, que
será encaminhado às coordenações de campanha de todos os candidatos à Presidência
da República. O documento foi redigido por um grupo de 13 cientistas e
acadêmicos, incluindo membros da diretoria e vice-presidentes da ABC.
“Até 2018 a gente tinha condições de olhar só para o
futuro e pontuar coisas que precisavam ser melhoradas, reforçadas, e que eram
importantes para o crescimento do sistema. Mas dessa vez tivemos que destacar
todo o drama vivido nesse passado recente, que está destruindo muito do que foi
conquistado até aqui”, diz o cientista Glaucius Oliva, professor do Instituto
de Física de São Carlos (IFSC) da USP e vice-presidente regional da ABC em São
Paulo, que participou da elaboração do documento. “O momento agora é muito mais
crítico do que em 2018. Claro que já tínhamos problemas, mas não vivíamos uma
crise institucional tão grave quanto a atual, com tantas áreas sendo afetadas
por políticas absolutamente desastrosas e destrutivas.”
Uma coisa que não mudou — e provavelmente nunca mudará,
por parte da academia — foi o reconhecimento da educação como pedra fundamental
para o desenvolvimento científico, econômico e social do País. “O Brasil
precisa de uma revolução na educação”, é o mantra que vem sendo repetido pela
ABC desde 2010, quando foi realizada a última Conferência Nacional de Ciência e
Tecnologia. “Só existe ciência, tecnologia e inovação a partir de uma educação
de qualidade. Educação é a base do sistema”, destacou o vice-presidente da ABC
e professor do Centro Universitário Senai-Cimatec (na Bahia), Jailson Bittencourt
de Andrade, no evento de apresentação https://www.youtube.com/watch?v=ZbyXnzi5JZg
do documento. “Sem educação não vai ter ciência”, reforçou a presidente da ABC
e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helena Nader.
O documento destaca que mais de 90% da ciência produzida
no País é feita dentro de universidades públicas, em associação com seus
programas de pós-graduação. Nesse contexto, os alunos de pós-graduação
(mestrado, doutorado e pós-doutorado) são a principal força de trabalho da
ciência brasileira, responsáveis por elaborar e executar projetos de pesquisa,
sob a orientação de seus professores. Fragilizado pelos sucessivos cortes
orçamentários e pela defasagem na oferta e nos valores das bolsas de
pós-graduação, porém, esse sistema começa a desmoronar. Há menos jovens
interessados em entrar para a universidade, e menos ainda em fazer
pós-graduação. Sem falar nos muitos pesquisadores que estão deixando o País
para trabalhar no exterior ou desistindo da carreira científica por aqui.
“Como desenvolver ciência e tecnologia no Brasil com os
estudantes fugindo da pós-graduação?”, questionou o professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da ABC, Luiz Davidovich, que
liderou o processo de confecção do documento durante sua gestão à frente da
academia (encerrada em maio deste ano). “Os estudantes não querem mais fazer
pós-graduação. As bolsas são ridículas”, afirmou.
O valor de uma bolsa de doutorado, que correspondia a dez
salários mínimos em 1995, por exemplo, hoje equivale a menos de dois salários
mínimos, segundo um artigo https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/03/bolsas-de-estudo-alcancam-o-menor-valor-da-historia.shtml
publicado por Davidovich e outras
lideranças do meio científico no jornal Folha de S. Paulo, em março deste ano.
O último reajuste foi em 2013. Desde então, os valores das bolsas federais são
de R$ 1.500 para mestrado e R$ 2.200 para doutorado, ante um salário mínimo de
R$ 1.200. “São pessoas graduadas, que estão sendo pagas com bolsas absurdamente
defasadas”, diz um manifesto http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/mais-de-50-entidades-endossam-manifesto-da-sbpc-em-defesa-das-bolsas-pagas-aos-pos-graduandos/
sobre o tema publicado pela Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em maio. Além dessa
desvalorização, a quantidade de bolsas oferecidas também diminuiu nos últimos
anos, e o orçamento discricionário das universidades federais hoje corresponde
a menos da metade do que era em 2015, segundo dados da Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
“É um projeto de país que destrói a educação (…); isso
tem que ser falado muito claramente”, afirmou Davidovich, no lançamento do
documento da ABC. “Temos uma missão agora, não como cientistas, mas como
cidadãos, de parar essa destruição da educação, essa destruição da ciência. É
uma tarefa urgente e extremamente relevante para o futuro do País.”
O desprezo pela ciência e pelas universidades públicas é
um tema recorrente do atual governo, que não se expressa apenas na forma de
cortes orçamentários. Em várias instâncias, nos últimos anos, ministros da
Educação escolhidos pelo presidente Jair Bolsonaro se referiram às
universidades de forma depreciativa. O ex-ministro Milton Ribeiro, por exemplo,
chegou a questionar a vantagem de se obter um diploma universitário e a dizer
que a universidade, na verdade, “deveria ser para poucos”.
“A realidade dos últimos anos de desinvestimento e
desestruturação do setor precisa ser revertida, sob risco de sucateamento da
infraestrutura construída e das perdas de cérebros formados e de perspectivas
para jovens cientistas”, escreve a ABC.
Investimentos
Uma das principais propostas da ABC para os candidatos é a elevação dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação no País (incluindo recursos públicos e privados) para 2% do PIB nacional nos próximos quatro anos — o dobro do patamar atual. Uma meta “extremamente factível” de ser atingida, segundo Nader, e até mesmo modesta, considerando que a média nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 2,6%. Em 2015 essa taxa no Brasil se aproximava de 1,5%, mas vem caindo desde então.
Os Estados Unidos, comparativamente, investem quase 3,5% do PIB em ciência
e tecnologia; e a China, 2,4%, segundo dados https://data.oecd.org/rd/gross-domestic-spending-on-r-d.htm
da OCDE.
“Para que a ciência possa continuar contribuindo com o
desenvolvimento do Brasil, é fundamental que ela conte com um financiamento
robusto, contínuo e crescente, que permita enfrentar os grandes desafios —
presentes e futuros — do País”, afirma a ABC.
Outra necessidade básica, apontada no documento, é
aumentar a formação de mestres e doutores — o que exige, obviamente, a reversão
da tendência atual de desmonte das universidades públicas, nas quais grande
parte desses recursos humanos especializados é formada. O Brasil tem hoje cerca
de 900 pesquisadores a cada milhão de habitantes — menos até do que outros
países da América Latina — e a meta seria chegar a 2 mil. Em países
desenvolvidos, esse número é da ordem de 4 mil, segundo a ABC. “A falta de
cientistas é preocupante”, diz o documento. “É temerário assentarmos a economia
apenas em commodities, cujos valores no mercado internacional oscilam muito, e
na produção de bens de baixa intensidade de conhecimento e que agregam pouco
valor ao produto final, ou ainda, dependermos fortemente de produtos externos,
como fertilizantes e vacinas.”
Sejam quais forem as medidas adotadas, é crucial que elas
sejam estruturadas como parte de uma “política de Estado” (e não uma política
de governo, que muda a cada quatro anos), destacam os autores. O documento
termina com uma lista de 19 recomendações para a elaboração da próxima
Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI), visto que a
estratégia atual http://www.finep.gov.br/images/a-finep/Politica/16_03_2018_Estrategia_Nacional_de_Ciencia_Tecnologia_e_Inovacao_2016_2022.pdf
, publicada em 2016, expira no final deste ano.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI)
vem trabalhando na elaboração de uma Política Nacional de Ciência, Tecnologia e
Inovação (PNCTI). Em uma carta conjunta enviada ao ministro Paulo Alvim em 14
de junho, porém, os presidentes da ABC, SBPC e Andifes afirmam que “não
subscrevem o texto, uma vez que necessita de aprimoramento e discussão ampla
entre os diferentes atores”.
Fonte: Jornal da USP
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